CAMINHANDO – CORPOS, TORÇÃO, SUPERFÍCIES

Tendo em seu horizonte mais amplo um interesse pelas relações entre escrita artística e multiplicação de mundos e corpos possíveis, a proposta deste texto é construir uma reflexão sobre a noção de torção, a partir de uma análise do trabalho da artista Lygia Clark: Caminhando. Acreditando que essa noção pode se tornar um conceito que auxilie o pensamento crítico e teórico na arte e escrita.

Por Raïssa de Góes

RESUMO

Seu mundo tinha se transfigurado, só sobraram suas costas. O que tinha que se pendurar estava pendurado. Mas vivia só com as costas, como se a carne tivesse sido metade arrancada. Uma transfiguração assim. Nisso, chegam aos meus ouvidos os sons do sino do entardecer. Ecoam diretamente na alma. Balança o que está pendurado. Sua alma vibra em resposta ao sino do entardecer. Toca e ecoa como se tivesse se fundido ao sino. Você é um sino. Ressoa até pela ponta dos dedos. E aquele sino é também sua morada. Não, não havia nem interior, nem exterior. O sino, ele próprio, é a sua morada, um sino que se fez com a criação do mundo. Seu sino é narrado e transmitido todas as noites. Toca em todos os recantos – viver e morrer, não percebo o limiar entre a vida e a morte.Kazuo Ohno

O ato e o corpo

“Descobri uma realidade nova não em mim, mas no mundo. Encontrei um “caminhando”. Um itinerário interior fora de mim” (CLARK. 1965, s/p.). Com essas palavras Lygia Clark começa seu texto Do ato de1965.  Um relato, uma escrita diante de uma descoberta. Essa descoberta havia sido feita dois anos antes, é em 1963 que Lygia realiza seu Caminhando pela primeira vez. Ela vinha da série bichos (1959/1964)e esse espanto se apresenta a ela, nela e no mundo. Os bichos formam uma série de objetos com os quais se pode interagir. Superfícies de alumínio e dobradiças, ao mexer em uma parte de seu corpo, para manter o equilíbrio, o objeto se reorganiza. Lygia dizia àqueles que não sabiam com interagir com o objeto: não se preocupem, o bicho sabe. Ela dá saber ao bicho, uma existência, uma forma de vida. Algo, ali, já se anuncia, um sopro de vida produz uma interação entre gente e bicho, um modo de saber desacostumado da razão humana. Um modo de ser que carrega o saber em seu corpo e não apenas numa caixinha fantasiosa dentro do crânio.

 Após a série bichos, segue-se:  trepantes, também objetos tridimensionais, ou seria melhor dizer, também seres que parecem estar em movimento pelo espaço. Entre eles, há a descoberta, há o Caminhando.

O trabalho, ou a proposição como viria chamar, sugeria que o participante pegasse uma fita de papel, desse uma volta e unisse suas duas pontas com cola. Uma fita de moebius seria, portanto, produzida.

Moebius, grafite sobre papel, Raïssa de Góes, 2019

Depois, com uma tesoura se começaria a cortar a fita horizontalmente, afastando seus lados, sem nunca apartá-los. Para que esses lados não se separem, era preciso uma escolha quando a tesoura tivesse prestes a separar o papel: esquerda ou direita e seguir. Sim, é preciso fazer essa escolha e arcar com ela.

A fita de moebius não é usada aleatoriamente, ela dá a ver e experimentar uma situação, um espaço torcido, um lugar. Uma topologia. A fita é uma superfície deformada e cria um espaço de paradoxo, onde dentro/fora se estendem um ao outro. Não se anulam, mas fazem o mesmo, a mesma superfície. Lygia experimenta esse paradoxo, vive essa experiência e sofre seu impacto. Ela produzia gesto e escrita durante todo seu percurso de criação. Suas proposições e seus textos caminham em torção, assim como a fita. Ela estava presente em cada pensamento/gesto que surgia para a artista e, por isso, o espanto, a atenção, a elaboração: “Antes, o bicho emergia em mim, jorrava em uma explosão obsessiva – por todos os meus sentidos. Agora, pela primeira vez com o ‘Caminhando’ – é o contrário. Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende de Mozart até os gestos do futebol de praia (CLARK,1965, s/ p, grifo da autora).

Assim Lygia segue o parágrafo. Há aqui um movimento, movimento, ressalto, que engloba gesto, ritmo (como ela fala), deslocamento e, em certa medida, um corte. Corte que não separa, mas é incisão que faz inscrição, corte que não assassina ou fere, mas promove mudança de percurso e paradigma, corte que funda e não mata, mesmo que algo no trajeto do gesto se perca.

O que digo aqui é que não se trata de um corte que aparta totalmente, mas que estende a superfície sobre qual ele incide. Um corte que faz mais, que não cessa. Por um lado, ele é do universo do encore: ainda. Trago o vocábulo francês para deixá-lo ressoar no texto              

  …                  

Ressoar (como uma televisão ligada no vizinho, como uma voz de alguém cantando longe) o discurso da psicanálise e de Lacan.  Um pouco mais, um pouco mais é o que diz esse encore, quase como uma súplica. Ele está no seminário 20 de Lacan[1], essa escrita que não cessa, escrita que, se ouvirmos em francês, não é somente encore, mais un corps. Um corpo que não para de se inscrever, um ato, um corpo que se faz na inscrição do corte.

Encore, un corps, um ainda que é também um gesto que não cessa de se fazer, um ato em gerúndio, caminhando.[2]

É após os bichos que Lygia se embaraça com sua descoberta. O movimento de seu corpo que já interagia com os bichos, agora experimenta o Caminhando e uma diferença é reconhecida. Os bichos “jorravam” dela, havia ali uma experiência de interior e exterior, já no Caminhando, há o contínuo. A extensão entre corpo e mundo. Mas, como disse, algo já se anunciava nessa série de trabalhos nos quais os objetos possuem saber. O bicho sabe: “um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o Bicho não há passividade, nem sua nem dele (CLARK, 1960, s/p.)

Objetos que não deveriam ser categorizados como esculturas, talvez não devam ser categorizados como nada – eles não deixam. São como uma pequena legião de Odradeks[3], a entidade que perturba e preocupa o pai de família, aquela vida sem endereço certo e que sobreviverá a existência do narrador. O bicho sabe, diz Lygia. Eles sobrevivem a ela e sobreviverão a nós todos, os melhores e os piores de nós.

Os bichos eram constituídos de superfícies e dobradiças. O bicho podia interagir com quem fosse mexer com ele. Suas partes respondiam e conduziam o gesto e a ação do outro, produzindo uma relação de simultaneidade entre bicho e gente que mexe no bicho. Um faz, de certo modo, o outro, a interação produz corpo.  Pois o objeto responde, tem verbo, ele sabe. Isso gera a perturbação que Franz Kafka mostra em seu conto.  A superfície dura do alumínio é corpo que age sobre meu corpo, algumas amarras se desfazem, se apresenta um risco. Risco de desfazimento e diluição. É nesse sentido que digo que essa interação é uma simultaneidade que produz corpos. Claro que, para muitas pessoas, nada disso pode acontecer, pode-se mexer no bicho, sorrir e achar “a arte dos anos de 1960 nos trouxe a participação, entendi”, pode-se permanecer numa ideia lúdica do bicho, mas se pode levar à risca o que propõe Lygia. E assumir o risco de um desfazimento no outro ou no mundo. Você, sino: “Dissolvo-me no coletivo, perco minha imagem, meu pai e todos passam a ser o mesmo pra mim.” (Clark, 1975, p. 352)

O espaço e o corpo

O plano é um conceito criado pelo homem com objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio. O quadrado, criação abstrata, é um produto do plano. Marcando arbitrariamente no espaço, o plano dá ao homem uma ideia inteiramente falsa e racional de sua própria realidade. CLARK, 1960.

Neste texto em que Lygia decreta a morte do plano, a questão é espaço e corpo. Quase me corrijo enquanto escrevo, não quero soar categórica demais em relação ao seu trabalho, dizer coisas como: a questão é parece inadequado para falar desse gesto que se estende por sua trajetória. Mas nos aproximemos dessa ideia de espaço e corpo. Como na interação com o bicho, espaço e corpo se transformam mutuamente, simultaneamente. Pensar em espaço é fazer habitar[4] uma superfície. O plano é “morto” e o espaço surge como agente, assim como o bicho, o espaço não é passivo. Há uma interação corpo/espaço, uma relação que os constitui. É na interação que corpo e espaço se constituem mutuamente, se fazem no ato. O Caminhando é também uma experiência dessa ordem. Através da tesoura, o corpo, as mãos, os braços vivenciam e entendem que é dentro e fora, essa superfície torcida da fita de moebius. A superfície é espaço.

Podemos pensar, por exemplo, na superfície do oceano: ela não está ali para aparar as águas ou se opor as profundezas. A superfície não é o limite do espaço, mas é espaço mesmo. A superfície pode ser um limiar, uma linha que se espraia e tem espessura. A superfície do oceano se estende a perder de vista, nela, microsseres vivem. A superfície é espaço, como nos mostra o oceano, a psicanálise e a matemática.

Lygia promove, portanto, essa dobra no espaço com os seus bichos.

Falemos, pois, da superfície, o espaço da superfície.

O desejo desta pesquisa e dessa escrita é Tocar a espessura branca da barata, como diz GH. Eu gostaria de tocar ou comer a espessura do gesto de Lygia. Experimentar no mundo da substância espessa e branca as mãos de Lygia. Quero deslizar na superfície da matéria e tocar o bicho, olhar mais sua dobra e alumínio, olhar no olho da dobra.

A dobra do bicho cria um vinco, uma marca, um plisse.  Olhar para esse vinco nos faz saber que houve um gesto, uma ação de dobra. Um gesto que marca, inscreve, escreve. Esse vinco, como uma pegada, diz uma coisa: houve um gesto, o tempo se mostra ainda com a divisão entre antes e depois. Esse tempo está na materialidade desse pensamento, a matéria mesmo, o alumínio e a dobra.

Desejo olhar com as mãos dela, as pontas de seus dedos. Compreender com o suor das palmas das minhas mãos (suo muito nas mãos). Lygia faz o mesmo que Helena Martins, Jean-Luc Godard, Tunga, Kazuo Ohno e muitos outros. Pensar com as mãos, produzir conceito com as mãos. O corpo está implicado tanto em sua escrita, quanto no ato de suas proposições. A dobra traz, portanto, essa ideia ainda de um tempo de antes e depois. Mas há o caminhando, um interior fora de mim. Um espanto ou descoberta.

O caminhando é uma fita de moebius, essa superfície que vem se tornando cada vez mais presente em minhas pesquisas como ponto de pensamento. Não digo um ponto de partida, mas, como é de sua natureza, um movimento, um nó e um espaço que dá voltas, mas é sem volta.

Essa superfície topológica promove uma coabitação entre os espaços de dentro e fora. O dentro e fora estão juntos sem se anularem ou sem se transformarem em uma só coisa. Existe o paradoxo, um espaço de paradoxo e como diz Sueli Rolink, sobre Lygia, é preciso habitar o paradoxo.

Torção, a fita torcida. Essa torção se apresenta como uma força que faz dizer: o dentro é o fora. Nome de um dos últimos bichos de Lygia. Bicho que não possuía dobra, mas torções, curvas. Podemos seguir seu caminhando incessante desse nome de bicho e dizer: o dentro é o fora é o dentro é o fora etc. Além de um embaralhamento espacial, há um tempo que não é cronológico. Lygia faz do tempo espaço e vice-versa. Ela faz ao mesmo tempo que descobre. O espaço é o dentro/fora, o tempo não é cronológico, mas simultâneo. O ato.

Lygia ainda propõe uma ação sobre a fita: com as duas lâminas pernas da tesoura faz o corte. Caminhando. Ação de corte que é inscrição.

O que chamo de inscrição é algo que marca, faz letra no corpo, algo como uma ruga ou uma lembrança que, quando feita, modifica o corpo. Passamos a andar e comer de outro jeito, perdermos uma terceira perna.[5] O peso muda. O nosso peso e o peso do ar. E também o fino peso entre pele e ar. Essa superfície que, como a do mar, é pasto de tantas bactérias. A pele.

O corte ao longo da fita, o corte caminhando que, como disse, estende o limite do espaço, espraia o paradoxo: o dentro é o fora. Um movimento constante, tempo simultâneo.

Esse gesto realizado por ela muda tudo. Muda, a meu ver, a trajetória de sua obra, muda o modo possível de se chegar ao seu gesto de vida.

Um corpo em torção, bicho gente, atenção desconcentrada, um modo de estar no espaço. Um estado de invenção.

O Caminhando é uma torção que produz um paradoxo, ela é o que faz. Faz e é torção. Este ato traz uma diferença em relação a dobra do bicho. Não há o vinco, mas passagem, trajeto, movimento. Há coabitação e simultaneidade, concomitância. A torção é paradoxo em ação, ato. Habitar o paradoxo é, nesse sentido, estar em movimento. Mesmo que lento, mesmo que um movimento que aparente imobilidade. Tomemos o exemplo do autor da epígrafe deste texto, Kazuo Ohno, mestre de Butoh, dança que trabalha, entre outras coisas, para entender esse corpo parado em movimento. Lembro de uma cena, certa vez descrita a mim, de um ator parado no palco enquanto seu corpo suava muito, como se corresse. É desse “estar parado” que me refiro.  Corpo imóvel que é um estar esvaziado e pleno. O ato de Lygia, a torção que se estende ao infinito, não é o infinito de um para sempre, pois se trata de outro modo de lidar com o tempo. Um estar parado e movente, uma força de bactérias efervescentes, me dá vontade de dizer e ouvir, ouvir o burburinho e a respiração das bactérias.

Ao inscrever a torção, Lygia faz um corpo, produz corpo, podemos experimentar e produzir em nós esse corpo que se move e pensa com mãos, pés, língua. Ver como quem come, como faz GH, escutar com as costas como fez Zinedine Zidane em campo. Esse corpo pode estar presente na dança, no esporte, nas ruas. Isso de modo mais evidente, mas também no corpo que escreve e é escrito. É escrito no ato da escrita, essa torção que nos desloca e faz tempo e espaço. Um corpo que faz e se faz na escrita. Uma respiração do tempo que se faz em ato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CLARK, Lygia. “Caminhando”. In: Livro Obra, 1964. Disponível em <http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17> Acesso em 26 ago 2017.

CLARK, Lygia. Do Ato. In: Livro Obra, 1965. Disponível em: http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17 Acesso em 26 ago 2017.

CLARK, Lygia. “Da Supressão do Objeto” in: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de Artistas – Anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

LACAN, Jacques. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. *edição não comercial.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema. São Paulo: n-1 edições,2016.


[1] LACAN, J. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010 (edição não comercial).

[2] Aqui vale uma nota, não uma nota explicativa, mas distrativa. Uma distração parece distanciar da limpeza e objetividade com as quais se mostra uma ideia em texto. Mas a distração, olhar pela janela, lembrar de uma história, faz também os pontos e nós da narrativa. Cria fundos e formas, ambienta, por vezes, faz cenário para o movimento. Estava, há um par de anos, tomando café com Fred Coelho, ali pelo pátio da universidade onde trabalhávamos, a prosa seguia nossos interesses, pesquisa e silêncios. Este último muito raros e esparsos devido a capacidade prosódica de meu interlocutor. O caminho nos levou à Lygia Clark e seu caminhando, foi quando ambos nos empolgamos e as vozes ganharam o volume da paixão. Os objetos de pesquisa têm disso e nos apaixonam. Um momento ele pergunta: por que caminhando? Quase já aos gritos ou entoando um canto qualquer, as vozes, entrelaçadas como o próprio trabalho de Lygia: o gerúndio. Não sei dizer se eu disse a ele ou ele a mim, mas o gerúndio traz esse sem cessar. Um caminhar, um ato que se faz todo o tempo. Depois de alguns meses esse tempo verbal nos uniu mais uma vez, assistíamos a palestra de Marcia Schuback na PUC, ela dizia sobre um formando, evocava um gerúndio necessário. Ganhei uma cotovelada de meu amigo e sorrimos como duas crianças diante da escuta de sua palavra secreta. 

[3] Refiro-me ao conto de Franz Kafka Preocupações de um pai de família, traduzido por Modesto Carone.

[4] Digo “fazer habitar” porque o espaço não é mais mero suporte, seja pictórico, seja a própria sala que recebe os objetos da exposição.

[5] Referência ao livro A Paixão segundo G.H.


 [JG1]É preciso identificar a fonte da imagem.

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