Um corpo que cai

Ensaio do livro Infância, palavra de risco, de Rosana Kohl Bines

Na página de abertura do livro Extremamente alto & incrivelmente perto, do escritor norte-americano Jonathan Safran Foer, em tradução de Daniel Galera, passamos a conhecer o narrador precoce do romance: Oskar Schell tem 9 anos, se veste apenas de branco, toca pandeiro, coleciona moedas raras e memorabilia dos Beatles, estuda francês e é fã do cientista Stephen Hawkings. Quando começa a história, o menino está a caminho do cemitério para sepultar o caixão sem corpo do seu pai, morto na queda de uma das torres gêmeas em 11 de Setembro de 2001. Disto saberemos um pouco mais tarde. Este centro nervoso do enredo é postergado e precedido por uma coleção de frases torrenciais, cujo efeito produz uma imagem acústica precisa deste pequeno narrador tagarela e petulante, que matraqueia quase que ininterruptamente as 360 páginas do livro. Eis o início da narrativa:

E que tal uma chaleira? E se o gargalo abrisse e fechasse quando o vapor saísse, funcionando como uma boca que pudesse assobiar melodias bonitas, recitar Shakespeare ou simplesmente rachar o bico junto comigo? Eu poderia inventar uma chaleira que lesse com a voz do Pai para me fazer dormir, ou talvez um conjunto de chaleiras que cantasse o refrão de “Yellow submarine”, que é uma música dos Beatles, que é uma banda que eu adoro porque a entomologia é uma das minhas raison d´être, que é uma expressão em francês que eu conheço. Outra coisa boa seria se eu pudesse treinar meu ânus para falar quando eu peidasse. Se quisesse ser extremamente hilário, eu o treinaria para dizer “Não fui eu!”, toda vez que soltasse um peido incrivelmente forte no Salão dos Espelhos, que fica em Versalhes, que fica nos arredores de Paris, que fica na França, obviamente, meu ânus diria “Ce n´était pas moi!”

E que tal microfones pequenos? E se todo mundo os engolisse, e eles tocassem o som de nossos corações em pequenos amplificadores que poderiam ficar nos bolsos de nossos macacões? Quando andasse de skate pela rua, à noite, você poderia escutar os batimentos cardíacos das outras pessoas e elas poderiam escutar os seus, tipo um sonar. O estranho seria se o coração das pessoas começasse a bater ao mesmo tempo, como as mulheres que moram juntas e têm seus períodos menstruais ao mesmo tempo, que é uma coisa que eu sei, mas não fazia questão nenhuma de saber. Seria muito estranho, com exceção do lugar no hospital onde os bebês nascem, que soaria como um candelabro de cristal em uma casa flutuante antes que os bebês tivessem tempo de alinhar seus batimentos. E a linha de chegada da Maratona de Nova York pareceria uma guerra.

Além disto, existem diversas situações em que é necessário escapar rápido, só que os humanos não possuem suas asas, pelo menos por enquanto, então que tal uma camisa feita de alpiste?1

A produção exuberante de enredos alternativos, encabeçados pela clássica expressão infantil “e se”, aciona na língua uma espiral expressiva que vai agregando ao longo do livro não apenas palavras, mas também números, rabiscos gráficos, fotografias, mapas, recortes da internet, cartões de visita, que o menino coleciona e arquiva em seu caderno, espécie de scrapbook ou álbum-miscelânea, composto de materiais e suportes diversificados, cuja exibição errática ao longo das páginas do livro propicia ao leitor uma ampliação no campo da experiência da linguagem.

Por experiência ampliada de linguagem eu me refiro, de forma mais imediata, ao contato com a textura sensível de certos acontecimentos ou afetos, que a narrativa torna palpável ao criar junto com as ferramentas da infância, como o lápis de cor, a cola e a tesoura. Decerto esta dimensão material do relato alarga aquilo que podemos ver e sentir no processo de leitura. Mas o que me parece ainda mais vital como operador de mudanças na percepção do que lemos é a natureza aberta e modificável das ações da criança sobre seu caderno. Oskar acrescenta, subtrai, rasura, superpõe e reposiciona os materiais, embaralhando pistas de sentido e tornando mais complexo o trabalho de leitura de imagens e enredos cambiantes. A imaginação do que virá depende da atenção microscópica do leitor sobre pequenos movimentos narrativos que armam e desarmam a paisagem do possível a cada virar de páginas, como nos caleidoscópios da infância. O grau de imprevisibilidade do enredo se torna, assim, altíssimo nas mãos do narrador-criança, já que o universo fabular se constrói pela atuação irrequieta do menino junto aos seus artefatos de criação. Em jogo nesta dinâmica inventiva com as páginas do caderno, está o imperativo, impossível e desejado, de reverter a morte do pai, de recontar a história de outro modo e alcançar assim um desfecho diferente.

Para pensar com mais densidade a relação entre catástrofe e fabulação, faremos um excurso à obra de Jacques Rancière. Quando reencontrarmos o pequeno Oskar ao final deste desvio, poderemos dimensionar melhor as estratégias que confecciona para levantar o corpo do pai (já que “os humanos não possuem asas”) e remontar a cena da queda fatal com a força do jogo e da arte.

O olhar não sabe antecipadamente o que vê

…do mesmo modo que o pensamento não sabe o que deve fazer com o que é visto. A formulação é de Jacques Rancière no ensaio “A imagem intolerável” do livro O espectador emancipado e define para o pensador os critérios elementares do que ele chama de “uma outra política do sensível”, fundada na resistência do visível à determinação do sentido, e por conseguinte, na impossibilidade de definir previamente os efeitos do que é exibido.2 Trata-se de questionar a cadeia automática entre realidade, representação e significação que alimenta certo modo de pensar a literatura e seus limites, aquilo que ela é capaz ou não de dizer e de suscitar.

O ataque de Rancière incide sobre a noção do irrepresentável em arte, que diz que certos eventos, por força de sua materialidade extrema, arruinariam qualquer esquema de inteligibilidade e inviabilizariam qualquer figura de comparação que pudesse ser comensurável à dimensão bruta do acontecimento. Ao dizer que algo é irrepresentável afirma-se, em última instância, que há eventos que estariam fora de processos de exibição e de significação. Parte da argumentação é montada sob a forma de crítica ao já muito comentado filme Shoá de Claude Lanzmann, um documentário de 9 horas e meia sobre o Holocausto, em que não se vê qualquer imagem histórica do evento. Não se mostram corpos empilhados, cercas de arame farpado ou fornos crematórios. O passado comparece à tela apenas por meio do testemunho dos sobreviventes, de suas palavras atuais, confrontadas com o desaparecimento dos locais de extermínio, filmados no tempo presente, em que sobressaem paisagens “limpas” dos escombros da guerra e cruelmente indiferentes aos tremores do que se narra.

O ascetismo visual deste filme consolidou uma espécie de paradigma estético desejável à representação de eventos-limite. Como se o impensável do evento – o extermínio em escala industrial – instalasse uma lacuna no pensamento e na capacidade de figurar a cena. E como se a única forma de honrar verdadeiramente o relato, de manter-se fiel ao horror, fosse apresentar este vazio representacional, na contramão das imagens que iludem o espectador de que é possível de fato imaginar o ocorrido. Ao fim e ao cabo, a lógica do irrepresentável converte-se numa política seletiva das formas mais apropriadas para se contar determinados eventos. A “boa representação” do extermínio seria a representação do irrepresentável, sua exposição extremada na tela. Rancière flagra aí uma contradição de base: a noção do irrepresentável implica, por um lado, a recusa radical à correspondência entre formas representativas e certas realidades extremas. Por outro, reivindica que alguns eventos só podem ser ditos de certa maneira, por uma linguagem adequada à excepcionalidade do acontecido. Rancière considera incompatível a manutenção simultânea de ambas as premissas e questiona como seria possível pleitear a abolição da representabilidade das formas e, ao mesmo tempo, pleitear formas mais adequadas à representação.

Em outro ensaio intitulado “Se o irrepresentável existe?”, publicado no livro O destino das imagens, Rancière aborda a questão pela análise comparativa de duas passagens literárias de natureza absolutamente díspares. De um lado, a parte inicial do tocante livro A espécie humana de Robert Antelme, companheiro da escritora Marguerite Duras. No trecho destacado por Rancière, o autor narra o silêncio sepulcral no campo de concentração de Buchenwald para onde fora deportado após operação fracassada de que participava como combatente da resistência francesa ao governo fascista de Vichy. De outra parte, um curto trecho de Madame Bovary de Flaubert, em que se narra um encontro silencioso entre os personagens Charles e Emma.

Ao equiparar ambas as passagens, Rancière argumenta que a linguagem que conta a desumanização nos campos e a linguagem que conta o enlevo amoroso entre o futuro casal obedecem aos mesmos padrões sintáticos e rítmicos. Trata-se de escritas paratáticas, feitas de períodos curtos e simples, que se sucedem sem conjunções conectivas, imprimindo aos relatos um mesmo esquema de rarefação discursiva. A experiência-limite dos campos de extermínio, vivida e descrita por Antelme, e a experiência sensório-afetiva inventada por Flaubert para Charles e Emma seriam conduzidas pela mesma estratégia de escrita de micro-percepções que tendem ao silêncio, ao evocarem experiências visuais e acústicas mínimas. Em Antelme, conhecemos a noite muda e gelada no campo pelo barulho diminuto dos homens mijando nas latrinas, pelo vapor que dali emana e pelo trajeto silencioso dos cães que fazem a ronda noturna, mas não latem, conforme sublinha Rancière. Em Flaubert, percebemos a qualidade atmosférica do silêncio que enlaça Charles e Emma pela descrição do pequeno punhado de poeira que o vento levanta por debaixo da porta, enquanto lá fora na fazenda uma galinha cacareja bem ao longe.3

Nos dois casos, Rancière argumenta que está em ação a mesma operação estética para produzir o efeito do silêncio: fazer coincidir sentimentos humanos e matéria inumana – objetos, bichos e fenômenos da natureza, – promovendo uma identidade entre opostos absolutos. Para contar a experiência do aniquilamento, da redução da vida aos seus elementos mais básicos – mijar, respirar, deitar, sentir frio, sentir fome – Antelme não se depararia com a impossibilidade da representação, com o irrepresentável per se, mas com o fato de que não há língua particular para contar a cena. Quando o testemunho busca uma linguagem para dizer o inumano, segundo Rancière, encontra uma linguagem já constituída do tornar-se inumano, uma linguagem que identifica emoções humanas à passividade da matéria inerte. A noção de irrepresentável só faz sentido para Rancière na afirmação de que nada pode ser dito em sua própria língua particular. Esta desautomação entre o fato e a linguagem disponível para dizê-lo abre um leque amplo de possibilidades de representação, enseja mais alternativas de produção de equivalências, mais meios de tornar presente o ausente, de acordo com o filósofo. Nesta direção, se seguimos com Rancière um pouco mais, o espaço ficcional se define como abertura radical do jogo estético às formas de dizer. Se não existe relação estável e previsível entre realidade, representação e significação, é possível postular então um princípio de identidade absoluta entre opostos. Para Rancière, a forma apropriada para representar determinada cena pode ser também a forma inapropriada, visto que não há regras intrínsecas de aceitabilidade entre temas e formas e que não há nada na natureza mesma dos eventos que prescreva ou proíba qualquer forma artística.

Brincar de vida e morte

Tal proposição de máxima reversibilidade entre opostos, em que uma forma pode vir a assumir o seu reverso radical, é posta em prática pelo pequeno Oskar num momento climático da narrativa, em que o menino decide rasgar as folhas do seu caderno e reordená-las ao revés, invertendo a ordem de um grupo de fotografias em preto-e-branco, que mostram um corpo avulso despencando de uma das torres gêmeas em Nova Iorque. A sequência de fotos do corpo que cai evoca uma foto tirada por Lyle Owerko em 11 de Setembro. Esta foto teve enorme impacto no campo das artes, inspirando o documentário 9/11 The Falling Man (2006) do cineasta norte-americano Henry Singer, além de servir de ponto de partida para o romance de Don Delillo The Falling Man (2007). Uma foto similar tirada por Richard Drew foi publicada no próprio dia da catástrofe no jornal The New York Times e em inúmeras outras publicações internacionais, provocando uma grande grita de protesto, que gerou uma discussão de cunho ético acerca do que se deve ou não mostrar publicamente. Diante do tabu da imagem, parece-me estratégico que o romance de Foer utilize um personagem criança como álibi para exibir a foto em suas páginas finais. O que era proibido ou impensável no mundo dos adultos torna-se possível no domínio infantil, graças à “irresponsabilidade” da criança, que não pode ser culpabilizada por seus atos “sem juízo”. A infância assume aqui uma força transgressiva, capaz de burlar as leis e sanções do mundo adulto, para dar visibilidade àquilo que de outra forma permaneceria oculto. Assim como na clássica história “A Roupa Nova do Rei”, de Hans Christian Andersen, Oskar Schell é aquele menino que pode apresentar a verdade e dizer que o rei está nu, porque tem a seu favor todo um imaginário construído sobre o caráter eminentemente ingênuo e inconsequente da infância. Se por um lado, no campo jurídico, a criança não pode se valer de sua palavra para dar testemunho,4 desqualificada por sua minoridade, na ficção de Foer, ao contrário, a criança é dona de sua palavra, de seu caderno e de suas ferramentas de corte-e-colagem. Pela fabulação inventiva, Oskar testemunha de forma vigorosa a dor pela perda do pai, através da força vivificante da arte, na produção de uma reviravolta na cena do corpo que cai.

Ao recompor a sequência de fotos ao revés, Oskar confecciona um pequeno Flipbook, espécie de cineminha de bolso em forma de livreto, em que cada página contém uma imagem ligeiramente diferente da anterior. Quando folheadas com rapidez, dão a sensação de movimento. O corpo levanta voo, desafia a lei da gravidade e o terror, fazendo subir a vida no lugar da morte, pela ação lúdica e leve de correr o polegar rapidamente pelas folhas. Vida e morte numa relação de radical reversibilidade ao alcance dos dedos, numa experimentação tátil que é vital, na medida em que o próprio gesto de folhear produz um vento que ajuda a soprar o corpo para o alto. Neste ponto em que o ato de ler emula o brincar e o manusear, e já não se distingue também do ver, do sentir e do significar, a narrativa atualiza com vigor a simultaneidade e a permutabilidade destes modos de experimentar a obra, graças à condução desmedida do narrador-criança, que não hesita em substituir o que é pelo que poderia ser.

No plano discursivo, o pequeno recurso retórico que faz acontecer esta mágica de virar o mundo de ponta a cabeça é o uso do modo condicional. A expressão “e se”, que encontramos no parágrafo de abertura do livro, volta com força para alterar a paisagem do possível, num movimento narrativo que atualiza no agora o inatual, confluindo temporalidades e espaços discrepantes, injetando a vida no tempo e no local da catástrofe.

Neste ponto, a narrativa busca perfazer em linguagem verbal a trajetória reversa do corpo, desdizendo a sequência de frases que contam a morte do pai naquele dia derradeiro. Mas não se trata de equivalências perfeitas. A linguagem verbal se encarrega de descrever justamente aquilo que as fotos apenas começaram a contar. A relação entre imagens e palavras não é aqui mimética ou especular. A narrativa não faz legenda para as fotos, mas atualiza a porção linguística das imagens. Nos termos de Deleuze, diríamos que as frases remontadas por Oskar acionam um devir-linguagem nas fotografias, um texto ainda por vir. Em contrapartida, as palavras possuem uma dimensão forte de visualidade e se deixam contaminar pela sequência fotográfica, internalizando, no ritmo do relato, na disposição paratática das frases avulsas, uma por parágrafo, o modo de apresentação das vinhetas visuais que compõem o Flipbook. Neste vai-e-vem entre palavras e imagens, o que se torna visível na leitura são os próprios deslocamentos – não só os deslocamentos do corpo para cima ou para baixo, dependendo da direção em que se folheiam as páginas, mas os deslocamentos e fluxos entre linguagem verbal e visual. As palavras sugam energia das fotos e vice-versa, fazendo aparecer o devir-verbal das imagens e o devir-visual das palavras:

Quando virei as páginas rapidamente parecia que o homem estava flutuando para cima no céu.

E se eu tivesse mais fotos, ele flutuaria para dentro de uma janela, voltaria para o prédio, e a fumaça seria sugada pelo buraco de dentro do qual o avião logo mais sairia.

O pai deixaria suas mensagens ao contrário, até que a secretária ficasse vazia, e o avião se afastaria dele voando ao contrário, até chegar a Boston.

Ele pegaria o elevador até a rua e apertaria o botão do último andar.

Caminharia de costas até o metrô, e o metrô iria de ré pelo túnel, de volta à nossa estação.

O Pai atravessaria de costas a roleta, depois passaria seu cartão do metrô ao contrário, depois caminharia de costas para casa enquanto lia o New York Times de trás para a frente.

Cuspiria café em sua caneca, desescovaria os dentes e colocaria pêlos no rosto com a lâmina de barbear.

Voltaria para a cama, o alarme soaria ao contrário e ele sonharia ao contrário.

Depois ele acordaria novamente no fim da noite que antecedeu o pior dos dias.

Ele andaria de costas até o meu quarto, assobiando “I am the Walrus” ao contrário.

Entraria na cama comigo.

Olharíamos para as estrelas no teto do meu quarto e elas puxariam de volta a luz de nossos olhos.5

Palavras finais (ou apenas começadas)

A reflexão esboçada até aqui pretende, de forma preliminar, colocar a infância na roda de discussão dos estudos literários, ao pensá-la como Denkbild ou “imagem de pensamento”, no sentido benjaminiano. Nesta direção, pensar a infância como figura literária significa percorrer os modos como a ficção materializa um saber e insufla o pensamento. Não se trata, pois, de estudar as representações da criança na literatura, mas de perceber a infância como método fabulador-especulativo, como procedimento da ordem do discurso, figura ou tropo desencadeador de uma prática inventiva e reflexiva em linguagem.

Assim, o que parece emergir das páginas de Extremamente alto & incrivelmente perto é uma força especulativa acerca de certas experiências liminares, em que as margens do humano e do inumano, da vida e da morte, da linguagem e do silêncio cedem à plasticidade daqueles que transitam por todos estes territórios, na condição incompleta, inacabada e movente, de quem cala, fala e titubeia, levanta, caminha de pé, tropeça, volta a levantar, empunha o lápis, colore e borra, pega o copo, escorrega e quebra. Ou, como Oskar Schell, alguém que rasga, desfaz a ordem, reposiciona, e na companhia de quem os leitores têm a chance de perfazer também toda a gama de variações de movimento, no folhear ágil do Flipbook. A infância é aqui pensada na dimensão destas experiências de passagem e como precursora de trajetos que redesenham o mapa das percepções e fabricam com os materiais dizíveis e visíveis novos vetores de força. Tal vocação para embaralhar a paisagem do sensível torna a infância, ao mesmo tempo, uma imagem incandescente e um mediador teórico vigoroso para se refletir sobre literatura hoje.

Nos ensaios “O que as crianças dizem” e “Gaguejou”, Deleuze descreve a literatura como um “mapa de virtualidades” e um sistema em “desequilíbrio perpétuo”, em que uma forma pode vir a ser outra e outra e outra e outra… Nesta espécie de lalação infantil, algo está sempre começando, em estado de eclosão, prestes a se dizer. É sobretudo como instância do nascer, que desejo pensar a infância no âmbito dos estudos literários, para ajudar a nomear o acontecimento da invenção, o momento em que algo passa a ser e, retomando o princípio da máxima reversibilidade, para ajudar a nomear o que ainda não é, o que aporta ao mundo uma diferença minúscula e decisiva, que pode simplesmente alterar a maneira como sentimos um espaço, um instante, um som, um afeto.6

Entre o corpo que cai e o corpo que levita, neste minúsculo e decisivo intervalo, se instala um idioma infante e insurgente, que age sobre o desastre, conjugando-o no modo condicional. A queda fatal se transforma assim numa cadeia de imagens potenciais, de grande voltagem poética. É no futuro do pretérito, numa temporalidade suspensiva, conjurada pela fabulação do menino, que pai e filho se reencontram no quarto de dormir, embaixo de um céu de ficção, olhando ambos para o teto estrelado do cômodo, local de projeções imaginárias que fazem brilhar a vida com outra intensidade.

1. J.S. Foer, Extremamente alto & incrivelmente perto, tradução de Daniel Galera, Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 11.

2. J. Rancière, “A imagem intolerável”, in O espectador emancipado, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p.153.

3. J. Rancière, “A imagem intolerável”, in O espectador emancipado, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p. 124-126.

4. L. A. Castello e C. Mársico, Oculto nas palavras. Dicionário etimológico para ensinar e aprender, Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 52.

5. J.S. Foer, Extremamente alto & incrivelmente perto, tradução de Daniel Galera, Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 359-360.

6. Essa frase incorpora trechos da obra de dois autores que me foram caros para a escrita deste ensaio, ainda que não compareçam textualmente sob a forma de citações diretas. A primeira referência recupera uma passagem do pensamento de Jean-François Lyotard: “O nascer não é apenas o fato biológico do parto, mas sob a cobertura e a descoberta deste fato, o acontecimento de uma possível alteração radical no curso que empurra as coisas a repetir o mesmo. A infância é o nome desta faculdade, tanto mais quanto aporta, no mundo do que é, o espasmo do que, por um instante, não é ainda nada. Do que já é mas ainda sem ser algo” (Lyotard apud W. Kohan, Infância, Entre educação e filosofia, p. 251-252). A segunda referência alude à definição da função da arte que faz o artista visual Christian Boltanski: “Et donc peut-être que l´élement intéressant, que l´on trouve de plus em plus rarement avec des expositions, c´est d´arriver à faire simplement que les gens sentent um espace ou um moment d´une manière um peu différente” (C. Boltanski, Parcours D´Ombres, Trévenans: Schraag, 2010, p.21).

Imagem que ilustra o post da artista Miti

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