Os Peixes, da @matheusadossantos, é um texto sobre a criação de novos corpos. Com a presença constante da morte, a morte da Atomic Mother, cuja delicadeza e encantamento podemos sentir mesmo de tão longe, é um manual sobre o que é preciso matar para construir um corpo. Como no peixe saindo da água que dá força à capa, a violência necessária para se desfazer de tudo aquilo que limita. Aqui os corpos são feitos através da navalha. São iniciados, e toda iniciação é um processo de morte e renascimento. Se os Mbayá-Guaykuru tinham o corpo escarificado para sempre se lembrarem que são um só, como nos disse Clastres, em Os Peixes o que a navalha cria são corpos sempre diferentes. Diferentes de todos os demais, mas também de si mesmos. Matheusa parece fazer um uso estratégico dos nomes próprios. Onde você a procura, ela nunca está. Polimórfica e polissêmica como as divindades mais antigas, mil nomes, mil anos, é Matheusa mas também Vitória, Epitáfio Martins mas também Pitá, passarinho, cobra e raposa. É o caboclo Ara Mathias aquele que usa a navalha, o fiador de novos corpos e novas vidas. Como a navalha que é usada no roncó para assentar o santo. Mas aqui os santos são muitos e eles não se assentam, constantemente mudando de lugar. O que Ara Mathias domina são antes as forças por trás de todas as formas, as forças cujo efeito criam as formas. Ser vegetal, passageira-verde, “por ora nem peixe, nem planta e nem de carne e osso”, como tantos antes dela, Matheusa é a responsável pela travessia de um lado para o outro. A sentinela que conhece o labirinto. Seus poemas e desenhos funcionam ora como invocações de poderosos encantamentos invisíveis, ora como pequenas janelas para os muitos planos habitáveis — na carne e no transe. Se um dia o Sol irá explodir, ainda assim outros corpos serão possíveis. Não precisa ter medo de visagem.
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